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CRÔNICA “APENAS UMA FOTO” DE LEILA FERREIRA

Jornalista e escritora Leila Ferreira publica neste site crônica do mais novo livro "VIver não dói" da Editora Globo

16 de abril de 2015

APENAS UMA FOTO

 

Não sei quantos anos eu tinha. Oito? Dez? Não me lembro. Sei apenas que já tinha vivido muito, ou visto muito. Era quase-adulta, quase-grande, naquela infância cheia de perguntas não-respondidas, gestos incompreendidos, medos que diariamente ganhavam novos nomes e novas caras. Arrastar móveis à noite, para garantir a porta fechada. Ouvir o choro de uma mãe a quem não havia como consolar. Ter que chamar de pai alguém que não conseguia ser pai. E ir à escola como se tudo estivesse perfeito, fingir com as amigas que estava sempre pronta para brincar. Na rua, a normalidade aparente: as amigas rindo com vontade, correndo sem medo, sem olhar para os lados ou para trás. E eu imitava, ou tentava imitar. Em casa, os longos silêncios do desamor enraizado ou os gritos que acabavam com a fome na hora do almoço e aumentavam o frio das madrugadas. Loucura, bondade, raiva, ciúmes, perdão, medo (sempre ele), perplexidade – na casa escura da minha infância, os substantivos abstratos me engoliam e eu tentava digerir as sílabas na solidão do meu quarto. No quarto ao lado, minha avó Luíza, que não andava, ouvia a Rádio Nacional e, quando aumentava o volume, eu sabia que estava chorando e não queria que eu ouvisse. Aí eu entrava devagarinho, e, se houvesse música tocando, eu dançava para distraí-la. Dançava até as lágrimas pararem.

 

Mas a lembrança que me veio hoje foi a de uma tarde em que eu decidi fazer algo para me alegrar. Algo que subvertesse a lógica do sofrimento, que alterasse a rotina implacável daquelas vidas opacas. Tinha sido meu aniversário naquela semana – não sei se de oito, nove, dez anos – e eu tinha ganhado um vestido, uma bolsa e um par de sandálias. Eu não conseguia parar de olhar para os presentes. Voltava da escola e ia correndo para o quarto. Colocava tudo sobre a cama e ficava contemplando as formas, as cores, a harmonia perfeita que parecia reinventar o espaço onde eu estava. Era como se aquele vestido, aquela bolsa e aquelas sandálias prometessem me transformar numa criança diferente da que eu era, mais parecida com as outras – que era o que eu mais desejava. Era, acima de tudo, a promessa de uma vida com mais beleza, mais ordem, mais previsibilidade. Aquelas três peças eram, ao mesmo tempo, figurino e cenário. E eu não queria correr o risco de perdê-las nunca, de deixar que se acabassem. Eram meu salvo-conduto para um outro mundo, onde as pessoas se enfeitavam para a vida, tinham alegrias, eram presenteadas.

 

Decidida a eternizar meus três presentes, fiz o que me pareceu mais sensato. Numa tarde daquela semana mágica, coloquei meu vestido novo, calcei as sandálias com dois laços imensos, peguei a bolsa vazia e saí sozinha, escondida da minha avó, para tirar uma foto – que a gente chamava de retrato. O fotógrafo, seu Mantovani, me cumprimentou com um certo espanto, mas disfarçou. Certamente era a primeira vez que recebia ali uma criança desacompanhada. Eu expliquei o que queria e ele me fez posar de pé, do lado de uma mesinha com flores artificiais, segurando a bolsa como se fosse um objeto precioso. Virou meu rosto algumas vezes, pediu que eu sorrisse, e uns dois dias depois foi até minha casa para entregar a foto – que ele se recusou a cobrar. Minha mãe se assustou, porque eu não tinha contado nada, mas não me repreendeu nem me pediu explicações. Ela se limitou a olhar longamente para a foto e a dar o meio-sorriso triste que era sua marca. Sem que eu dissesse uma palavra, entendeu tudo: o significado da foto, a autonomia do meu gesto e a importância que aquele momento, eternizado, teria na minha vida.

 

Olho a foto agora, 50 anos depois, e sinto  uma tristeza antiga dilacerar meu falso brilho, minha alegria rasa. Os olhos precocemente melancólicos registrados pelo seu Mantovani atravessam minha alma  com doçura – e não deixam pedra sobre pedra. O meio-sorriso, tão parecido com o da minha mãe, me leva de volta à casa escura. E o vestido impecável, a sandália de laços, a bolsa (tão adulta) que não carregava nada além da vontade de eternizar a alegria – tudo isso acaba por me revelar que a tristeza da qual eu tentava fugir talvez seja a matéria que mais me constitua. Nem o vestido novo, nem a pose para o retrato, nem o sorriso para o fotógrafo conseguiram encobrir a melancolia – que era a mesma das lágrimas da minha avó e do sorriso incompleto da minha mãe. Abraço a tristeza agora como se abraçasse as duas e me abraçasse. Não há mais por que fugir.  E, se houvesse algo para eternizar neste momento, seria apenas a saudade. Até da casa escura. Até do meu pai.

 

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