EDUARDO LIMA PROFETIZOU SUA MORTE EM POESIA
Alguns meses antes de sua morte, poeta sonhou como seria seu velório
22 de novembro de 2014O ENTERRO
De sonhos lembro quase nada. Ao acordar fico confuso, misturo tudo e as referências se perdem. Sonhos são a absoluta falta de nexo. Alguns, entretanto, têm o condão de parecerem vivos. Recentemente passei a noite num velório pomposo – no sonho, claro. Havia flores e conversa. Muita gente. Lá estavam velhos amigos meus. Uns circunspetos, outros alheios, sorridentes. Lembro-me de avistar um ex-colega de escola que demoradamente contou sua vida, vida de pouca graça. Fez medicina e passou a juventude enfurnado num laboratório. Lá estava também o fazendeiro, dono de gado, muitas cabeças, dono de pasto e rio, morro atrás de morro. O advogado estava lá. Defendera sempre causas cíveis, mas aventurou-se certa vez pelo direito humano e quase foi apedrejado no condomínio. Outro dos amigos, de fugaz passagem minha pelo serviço público, trazia o punho enfaixado e contava sua gloriosa incursão pelas quadras de peteca. E até dissertou sobre o tema, já que a peteca é um jogo criado em Belo Horizonte. Foi o bastante para eu pensar o quanto é sem graça o tal jogo: marmanjo dando tapinha na peteca! Ri em silêncio da imagem que criei. Ao longe avistei a velha amiga. Foi minha confidente na adolescência. Levava cartas de paixão a uma namorada que se escondia no colégio das Irmãs. Lia as cartas e depois tecia comentários poéticos, por carta mais linda que as lindas. Tinha o cabelo pintado de uma cor viva e agora, no meu sonho aparentava cansaço. Minha mãe tinha uma lágrima demorada nos cílios. Meu irmão cruzava as pernas e fumava um cigarro fedorento. Falava de vez em quando com um primo de Diamantina, tresnoitado, todo amarrotado. Serviu-se um licor de pequi no velório e alguém, num canto, leu um poema parecido com um que eu escrevera em 2001. Por mim passou um cantor, depois um editor de livros frágeis, um instrumentista de terceira e um dono de boteco fino, destes cujo banheiro já se cheiram no corredor. Dos que a porta range e o barulho do xixi no vaso é ouvido longe. O dono do bar comentou sobre o meu gosto pelas almôndegas, com farinha e pimenta. Num jardim, fora da sala reservada ao caixão, juntavam-se só as pessoas conhecidas e uma ex-mulher, com quem tive dois filhos, contava nossas aventuras de hippie numa praia deserta na Bahia. Passamos fome. Era uma embira de dar gosto; mais gente se achegou. Jornalistas, notáveis, pessoas que eu nem imaginara que pudessem estar ali, num velório sem graça. A sala foi ficando cheia e um padre amigo, de uma Igreja que minha mãe freqüenta, muniu-se bíblia e fez uma oração meio triste, recitou um salmo e encomendou o morto – momento em que me chamou pelo nome e eu não respondi. Olhei bem a cena do sonho e percebi que o defunto era eu. O sonho talvez se tenha motivado numa conversa com uma amiga simples e sincera: “Eduardo, você é muito estimado. Seu enterro vai ser uma beleza”. E morreu de rir. Pois foi a amiga, com sua observação bem humorada, que me fez dormir em sobressalto. E assim me provocou o sonho. Os sonhos, por mais que nos possam causar estranheza, são fruto do lado escuro da gente, do que sequer imaginamos de nós, do que não conhecemos de nossa memória, nossa inteligência e nossa parte alma. O devaneio, contudo, não me assustou, confortou-me. Antecipando o meu velório, fez-me ver, num sonho demorado, amigos que há muito não vejo. Obrigado, amiga,se pela espontaneidade e pela análise carinhosa com que me conceitua. Conto com sua presença em meu velório e se você não for vou puxar seu pé de noite.
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